A Escola de Educadoras de Infância

Ano lectivo 1968/1969

Lá fui eu para a escola de Educadoras de Infância.

Naquele tempo, a formação de Educadoras era feita unicamente em Instituições Particulares.

Em Lisboa havia a Maria Ulrich, a Mitza e a João de Deus, que ficou logo excluída porque as indicações das amigas educadoras não eram muito abonatórias. A Mitza ficava em Benfica, um casarão numa azinhaga, no meio de Monsanto. Achei aquilo o fim do mundo! 

Acho que fui para a Maria Ulrich pela localização e facilidade de transporte.

Como a escola era de cariz católico, conforme o estipulado nas normas de admissão, lá entrei acompanhada por uma carta de recomendação do padre Zé Baptista, o padre da Parede, atestando que eu tinha boa formação moral e religiosa.

A Escola de Educadoras de Infância, nome verdadeiro da Escola Maria Ulrich, estava instalada num prédio antigo na rua das Trinas em Santos. No rés do chão funcionava o  Jardim de Infância “O Nosso Jardim” que também servia de local de estágio. A ideia que tenho é que era um edifício magnifico, embora para as concepções actuais  pouco funcional.

Três salas de aula; uma sala misto de secretaria, sala de professores e sala da direcção; uma pequena cozinha onde aquecíamos a comida que levávamos de casa; um belo salão com uma enorme lareira, forrado até ao tecto com azulejos. Em frente das salas de aula outra grande sala com piano, espelho e uma mesa/altar temático. (Consoante a época do ano mudava de decoração e de santos). Essa sala dava para um jardim muito aconchegado, com um pequeno lago e  jacarandás.

O equipamento das salas de aula, era bastante modesto, mas em toda a casa se respirava "um discreto charme da burguesia".

Não sei explicar muito bem, o que é “o discreto charme da burguesia”, mas mal comparado, era um espaço como por vezes se encontrava em casas solarengas ou quintas antigas, usadas só para férias, tudo tinha um ar … só me ocorre uma palavra que já ninguém utiliza, "fanê"! (acho até que a palavra está escrita foneticamente).

Cadeirões de madeira com almofadas estampadas, e grandes jarras sempre floridas, ajudavam a criar esse ambiente.

     A Maria Ulrich, a Maria como era chamada por todos, era uma figura muito especial. Grande com um certo ar … a palavra que me ocorre para a descrever é esgrouviado. Para nós, era muito velha (na altura devia ter no máximo uns cinquenta anos). Cabelo ralo sempre despenteado, com a roupa ponta abaixo, ponta acima. Olhava para nós por traz de uns óculos muito grossos e quando nos olhava fazia uns esgares um pouco inquietantes. Dava uma disciplina que se chamava Formação da Educadora, e que era uma grande seca.
     
     Vinha para a escola de carro com motorista, e um cão que se chamava Pepito.

 O cão era igual a ela, velho gordo e com peladas, acompanhando-a mesmo nas aulas, deitado debaixo da secretária. Não sei porquê gostava dela, embora estivéssemos quase sempre em oposição. Talvez por não estar muito habituada a ser contrariada, ou por reconhecer em mim perfil de futura educadora, ela também gostava de mim. Achava que eu era "uma força da natureza" e tinha uma grande "frescura". Hoje, passados tantos anos, numa altura em que já estou bastante fora do prazo de validade, recordo as suas palavras no fim do curso:

- Ana Maria, não percas nunca essa frescura que tens dentro de ti.

Nunca compreendi, e não sei porque é que tudo tem de ser diferente comigo … havia as alunas brilhantes, as que tinham uma grande sensibilidade, algumas até faziam versos, e as muito trabalhadoras. Tudo atributos que se podiam facilmente reconhecer, enquanto eu só era muito fresca!

Para além da Maria, havia o corpo docente efectivo na escola. Era basicamente constituído pela Maria Isabel Mendonça Soares, que consoante os anos nos dava Formação Portuguesa e Literatura Infantil e pelas Monitoras, escolhidas entre as Educadoras com nomes sonantes na Sociedade da época. Elas, para além do acompanhamento nos estágios, estavam encarregues de leccionar os conteúdos mais práticos do programa, tais como Primeiros Socorros, Higiene, Trabalhos Manuais e Prática Pedagógica.

Esse corpo docente era o garante da transmissão dos valores que a escola defendia.

Tudo na escola, desde o ambiente aos conteúdos, passando pela bata que usávamos no estágio, de cor lisa e suave, gola, punhos e avental de riscas no mesmo tom, procurava transmitir noções de classe, ordem e brio profissional!

Mais uma vez o meu pai, que procurava que eu não me deslumbrasse com alguns aspectos (eu por acaso até gostava da bata), estava sempre a dizer:

- Não sei o que pareces com isso vestido. Se não te pões a pau ainda acabas no Movimento Nacional Feminino. Pareces a Supico Pinto!  (Acho que a Supico Pinto era a presidente do tal Movimento Nacional Feminino, aparecia sempre nos telejornais muito bem fardada, quando os militares partiam ou regressavam das Colónias).

Mas, tal como em casa, a minha mãe e avó nunca conseguiram fazer de mim uma boa dona de casa, também nunca consegui ficar muito imbuída dos valores da escola. Como reagia sempre pela negativa, até em crise religiosa entrei, o que mais tarde veio a dar alguns problemas, porque foi a “área de conteúdo” em que tive mais problemas com a transmissão de conhecimentos às crianças.

Como o texto já vai longo, e os aspectos que poderia relatar não são relevantes, omito comentários sobre os outros professores, profissionais reconhecidos pela sua competência e que deixaram  boas recordações.

Mas como estamos a falar de Escrita e Leitura, vamos regressar ao assunto.
   
   Nuns apontamentos policopiados pude encontrar algumas indicações para desenvolver essa área do saber. Vejamos algumas:

  
“  "Exercícios de Propedêutica da Leitura e Escrita

"Com este caderno pretende-se dar às educadoras exemplos de um plano de lições preparatórias para a escrita e a leitura. Cada lição pode ser mais desenvolvida ou adaptada de modo no entanto a não alterar o seu valor. Procurou-se seguir em cada lição mais ou menos o mesmo esquema:


   1º - Uma actividade motivadora que desperte o interesse da criança e ao mesmo tempo desenvolva o seu raciocínio, vocabulário, sentido auditivo etc.…

  2º - Exercícios motores que ajudem a criança a exprimir o que sentiu, a desenvolver e coordenar a sua motricidade etc. assim como a melhor consciencializar o grafismo que depois irá executar. Alguns destes exercícios insistirão mais nas noções de Esquerda, Direita, etc.

- Execução dum grafismo que prepare a criança para a escrita, não só no sentido da educação da mão e dedos, como também no de exprimir uma ideia. Procura-se graduar as dificuldades.


- Algumas lições têm exercícios de percepção de semelhanças ( borboletas, flores...)  para lembrar à educadora quanto estas actividades são  úteis.


A seguir a estas lições orientadas, a criança poderá fazer desenhos ou pintura livre para expressar à vontade o que quiser, até para repetir as formas aprendidas se isso lhe interessar.

Algumas lições poderão ser feitas duma só vez, outras desdobradas em várias vezes.
Pode-se repetir os exercícios em que a criança tiver mais dificuldade, ou pelo contrário não fazer os que lhe são demasiado simples".

Noutros apontamentos, pude constatar que a teoria pedagógica em vigor na Escola de Educadoras era a da “Educação Sensorial”, (...) que se estruturou modernamente através das experiências e metodologia dos pedagogos da nossa era:
 - primeiro Froebell, em seguida e de modo muito especial: Montessori e Decroly. 

Depois relembrei que isso se fazia através dos chamados "Centros de Interesse". 

“Decroly tinha uma grande preocupação com a educação da criança. Educação da vida para a vida segundo os interesses da criança. Ora, o maior interesse da criança é ela própria e as suas necessidades: Alimentação; abrigo; defender-se do inimigo; trabalhar solidariamente; repousar e recriar. (...) Ele tinha a preocupação extrema que os Centros de Interesse correspondessem aos interesses e necessidades da criança. 

O Centro de Interesse será um princípio para uma unidade de pensamento, de relação entre as ideias. Parte-se sempre do concreto e do real. Há a variedade na unidade, o que permite a repetição interessante que leva a uma melhor aprendizagem. Pelo Centro de Interesse a criança fica com a noção completa de um determinado assunto”         

Mas se uma coisa é a teoria, vejamos agora como é que ela se desenrolava na prática.



EXEMPLO DE UM CENTRO DE INTERESSE

No primeiro ano, os estágios eram aquilo que hoje em dia se pode considerar como de observação participada: observávamos a educadora e as crianças, e 
introduzíamos pequenas actividades.

No segundo ano já tínhamos de ficar algum tempo responsáveis por um grupo. Substituíamos normalmente as colegas que estavam a fazer o estágio final, que durante esse período tinham aulas na Escola. Depois de um estágio de curta duração para conhecermos o grupo de crianças e a instituição, lá íamos nós.

Este Centro de Interesse foi elaborado com essa finalidade. Tem algumas pérolas que devia ter vergonha de mostrar! (É preciso não esquecer que estávamos em 1968 ou 1969)




É sobre o Vestuário e está organizado para ser desenvolvido ao longo de três semanas, com 20 crianças de cinco e seis anos de idade, provenientes de meio popular. Os sub-temas semanais eram:

- A lã e os nossos fatos

- Os alfaiates e as costureiras



- Os sapatos e os sapateiros .


A razão apresentada para a escolha do tema é a de que “este tema já estava escolhido na programação do ano, para ser dado nesta ocasião, porque, é mais frio, é inverno e é preciso andar mais agasalhado, por isso é que se fala do Vestuário.”

Isto dos interesses das crianças tem muito que se lhe diga – dantes e agora!

De seguida está descrita a finalidade das actividades a aplicar ao longo das três semanas.





Depois de uma descrição exaustiva dos objectivos de cada actividade, segue-se o horário de cada semana e o seu desenvolvimento.





Esta primeira semana era dedicada à Lã e aos nossos fatos e a sua ideia força: Vamos andar todos limpinhos. (Tenho a sensação que a “ideia força” era qualquer coisa que não devia estar bem interiorizada…)

Depois do horário o desenvolvimento de todas as actividades. Na descrição da conversa verifiquei que tal como fazia nas redacções da escola, tive necessidade de utilizar o discurso directo.




Um verdadeiro mimo esta conversa!

Outro mimo era a expressão plástica, apesar da existência do modelo já mostro algumas preocupações latentes com a expressão livre das crianças, quando refiro: “Está claro que não dou este modelo, dou o material e deixo-os observar as fotografias e depois fazerem como quiserem”




Não vou descrever exaustivamente todo o centro de interesse, mas sim deixar alguns exemplos de como pretendia:

    “Levar a criança a uma maior descoberta do mundo e dos outros”.

    “Partindo sempre do concreto e do real, dando a variedade na unidade”.

     "Pois isso permite a repetição interessante, que leva a uma melhor aprendizagem”.          ( ! )

Havia muita variedade no lançamento dos sub-temas! Uma conversa na primeira semana, uma visita a uma alfaiataria na segunda, uma observação na terceira.

Os dias eram muito preenchidos, pudera! era necessária a tal repetição interessante!

Muito movimento, muita expressão plástica, em todas as semanas iniciações à escrita e ao cálculo, jogos de atenção  e muita oração, como se pode verificar nos horários semanais.




Sem preocupação com que as actividades correspondam ao horário aqui ficam alguns exemplos de actividades.


O Movimento:



A Iniciação à Escrita:


A Iniciação à Escrita com Ditado Seguido de Grafismos:




A Iniciação ao Cálculo:



Na terceira semana, apesar do tema ser os sapatos e os sapateiros mostro já uma grade preocupação multicultural. ( ! )



Sou bastante mais sintética no desenvolvimento da conversa. Já não utilizo o discurso directo!


Nota: O “Kimono a levar deveria ser um roupão chinês da minha avó e os “pretos” deviam estar todos com saias de palha,em papel frisado. O anorak era da minha mãe, tinha uma 
uma pele no capuz. 



Mas de todos estes mimos, penso que as orações e o silencio que as antecedem são as actividades mais relevantes para se perceber como não se devia fazer a articulação de conteúdos. ( Mas era como eu julgava que se fazia ! )


A Finalidade do Silêncio e da Oração:




Das Finalidades  Para a Aplicação Prática:

Analisando o documento, vejo que na prática o que pretendia com o silencio era cansar as crianças até à exaustão, como se depreende nos seguintes exemplos:




Só então os desgraçados quase desfalecidos, de rosto vermelho, exaustos e a transpirar, estariam aptos para aguentar o “Encontro mais intimo com Deus”.


E que belas conversas teríamos com Ele:

    “Obrigada Jesus que nos deste os carneirinhos amigos que nos dão a lã para os nossos fatinhos”






E assim, como está descrito, lá  pretendia “Ensinar as crianças a conversar com Deus como se conversa com um amigo, sem habituar as crianças a formulas”. No entanto, como atrás referi, esta foi sempre a área em que tive mais dificuldade em conseguir a adesão das crianças.

Estágio numa instituição perto da Avenida Alvares Cabral , Decorreu enquanto a Olívia Mendes que ali fazia o estágio
 do 3º ano foi para a escola.


Alguns Centros de Interesse depois, felizmente bastante melhores do que este exemplo, lá fui eu para o estágio final, o estágio do terceiro Ano.

Mas antes, para nos situarmos, há mais um texto para ler: “Para um Novo Olhar Sobre a Problemática da Leitura”. Este texto vai ter continuação mais adiante.

9 comentários:

  1. Parabéns pelo texto e por tudo! Um excelente material para trabalhar na formação inicial e para uma melhor compreensão da forma como os saberes da educação de infância se foram construindo, as marcas que deixaram. Devo ter muitos exemplos parecidos nos meus relatórios de estágio.. ( na altura não se chamava portefolio!) . é mesmo uma pérola preciosa, que evidencia como se constróiem os saberes profissionais, como a formação inicial é apenas uma primeira etapa da aprendizagem profissional. Muito obrigada por este testemunho, por esta partilha tão rica e tão rara . Um abraço amigo Maria João Cardona

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  2. Afinal está cá o comentário.Obrigada Entrar como anónimo é a melhor maneira. Beijos e até breve.

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  3. Acabei de ler o teu texto.Entraste para a "Maria" quando eu acabei.Na tua descrição sobre a escola já encontrei umas diferenças.Não falas da Puri,nem da Fernanda A:Pereira,nem da Teresa de Castro.Mas como tu identifiquei um determinado ambiente.Fané quer dizer vagamente degradado no sentido de usado.Mas achei-o declaradamente "bem".Como tinha andado no Colégio Ingl~es e no Liceu Francês,era um género que não era o meu,mas que eu conhcia muitíssimo bem.Depois os centros de interesse,que eram exactamente como tu os expões e que,vistos aqui e agora,mostram o caminho,os caminhos que fomos aprendendo e atingindo progressos tão importantes para acriança e para nós como profissionais.Tens que coligir toda esta riqueza de maneira a ser lida pelas Escolas e pelas educadoras.Sei que esse será o caminho.Beijo.

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    1. Maria Carlos, Gosto tanto de ler os vossos comentários. Não falei na Puri porque não me lembrei. Agora a Fernanda A. Pereira e a Teresa de Castro, eu acho que não estavam lá no meu tempo.
      Em relação ao ambiente da escola, como tu dizes "achei-o declaradamente "bem", estava tudo muito cuidado e não deixou de nos marcar profundamente, nos nossos Jardins de Infância onde procurávamos que nada estivesse ponta abaixo, ponta a cima. Mas para mim tinha um ar fané, que eu encontrava numa quinta linda e pouco habitada, em Sintra onde com os escuteiros ia fazer acantonamentos.

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  4. Só tenho de 'parabenizar» a autora, mais uma vez, pela sua memória, pela capacidade de guardar todos os documentos, de os expor, dando-lhes e acrescentando-lhes sentido.Digo « acrescentando-lhes» porque, efetivamente passarão a ser úteis a outros. Podem ser uma boa base de trabalho, como já foi dito em comentário anterior.. Eu aprecio verdadeiramente o cuidado posto naqueles planos, a coerência interna e a a lógica dos mesmos. Tudo pensado ao pormenor, refletido antes, donde a alta probabilidade de conduzirem a verdadeira aprendizagem do tema. Será que não faltam, por vezes esses elementos em formas que reconhecemos hoje, como mais avançadas? Acho fantástico este olhar a um tempo ternurento ( não sei se é o termo) e crítico da autora sobre a sua própria história. História, para mim, é algo que não se renega. Naquele tempo era assim e era certamente, o melhor da época.Por ter sido tão bem feito é que se pôde depois integrar o que as ciências da educação nos foram mostrando. Os votps da Maria Ulrickh concretizaram-se: a aNA NÃO PERDEU A FRESCURA

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    1. Este comentário foi removido pelo autor.

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    2. Manuela gosto de ser "parabenizada", como diz o A. Pereira. Eu acho que aquilo é muito datado, incipiente,dá vontade de rir. Como era trabalho para apresentar tinha de ser assim. Agora concordo contigo, acho que temos de integrar alguns elementos em formas que reconhecemos hoje como mais avançadas. C. de interesse e projetos será que são do interesse das crianças, será que não há algumas parecenças. Obrigada Meu Deus por me teres dado uma amiga tão querida.Amém

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  5. não sei quem ó A. Pereira e já estás a gozar comigo, claro. Para a próxima, não comento, ou comento para mim.

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    1. É o Ricardo Araújo Pereira que quando está de manhã na Rádio Comercial parabeniza os ouvintes que lhe escrevem a pedir para ele lhes dar os parabéns, porque fazem anos, porque perderam 100g, etc.
      POR FAVOR NÃO ME ABANDONES!

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