A Escola Primária

Aos seis anos, quando chegou Outubro, fui para a escola. Não para a escola pública mas para um colégio que havia na Parede, o "Colégio da Bafureira". O colégio era gerido por duas senhoras, a D. Lucinda a directora , e a Julinha que ensinava lavores.

De bata preta, com um monograma com um C e um B entrelaçados e bordados a branco, lá fui eu!


6 de Outubro de 1956

A professora não era chamada por "senhora professora" mas por "Cilda". Acho que gostava dela, mas só me lembro que usava óculos e tinha uma voz metálica. 
Foi a minha professora da 1ª à 4ª classe.

Sabendo ler, não sei se isso foi valorizado. Da aprendizagem da escrita não me recordo. Lembro-me do livro de leitura, herdado do meu irmão, impecável (até vir para as minhas mãos), forrado com um papel Kraft lavrado, cor de laranja, da pasta de tecido escocês, e de uma caixa de madeira com uma estampa, para guardar os lápis e canetas.



Passados tantos anos, esquecemos que os livros escolares eram um precioso instrumento para veicular os ideais do Estado Novo. Alguns textos e sobretudo as imagens, na sua aparente ingenuidade, podem fazer-nos sorrir.

As saudades por vezes provocam distracções!

Mas voltemos à minha Escola Primária. Imagino que a aprendizagem foi feita sem grande esforço, desenvolvendo estratégias para me safar o melhor possível sem grande trabalho. Mas dessas estratégias falaremos a seguir. Pelo que me foi dado observar as notas nunca foram brilhantes!




Mas de tudo, o mais doloroso eram as aulas de lavores. Aquilo obedecia a uma progressão. Primeira tarefa – embainhar uma fralda.

Depois de pronta era preciso bordar a palavra “Bebé” a ponto pé de flor. No ano seguinte era preciso fazer um saco de guardanapo, bordado com outro ponto com nome estranho, e o martírio terminava na 4ª classe com a feitura de uma toalha de chá bordada a ponto de cruz.

Um horror!

As minhas mãos não davam para aquilo. O suor escorria, a linha ficava preta e dava nós, que não deixavam a agulha correr na bainha. Da primeira à 4ª classe a maldita fralda, já muito preta, acompanhou-me sem nunca ter sido terminada, apesar da insistência.

Devia decorrer dessas malditas aulas a angústia que por vezes me acometia. Surgia em mim uma necessidade muito forte de transgredir, a que não conseguia resistir.

Eu ia sozinha para o colégio, a Parede daquele tempo não oferecia perigos, então, de vez em quando, a angústia batia forte e, eu devia pensar:
- Hoje não consigo enfrentar aquilo! ( não conseguia ir às aulas nesse dia ).

Muito pequena de bata preta, correndo o risco de ser vista, a adrenalina subia, e o sítio escolhido para me esconder era o jardim público, o "Parque Morais" como era chamado. 

Para não ser vista, escondia-me debaixo de um banco num sítio afastado, e aí ficava tolhida de medo, sem me mexer, vendo o sol através das frinchas do banco, até que no quartel dos bombeiros soasse a sirene a anunciar meio dia. Depois como aquilo tinha sido doloroso, só voltava a repetir a graça, quando já me tinha esquecido do sofrimento.

O colégio tinha internato e ensino normal, com horário até às quatro horas. No internato havia muita gente vinda das colónias, gente de cor, filhas de sobas e ... lembro-me duma Mónique, era filha de um soba, acho que da Guiné. Devia ser gente com dinheiro para mandar os filhos estudar para tão longe. Outras alunas vinham da província.

E eu, que de vez em quando tinha dificuldade em aguentar a rotina das aulas, adorava pensar que ia ficar também interna! Achava que aquilo devia ser divertido, as brincadeiras nas camaratas, essas coisas todas… ter uma farda com chapéuzinho. Só as internas é que tinham essa farda, nós tínhamos só uma bata preta. Lembro-me que havia umas miúdas que tinham a bata de cetim, a minha era normal, de pano.
Mas eu, com o meu lado "pimba", achava que o cetim é que dava categoria... era macio... mas nunca tive uma bata de cetim...Também nunca fiquei interna...

Na altura os engenheiros agrónomos e silvicultores, cá não se safavam, eram todos funcionários públicos. Quase todos os colegas do meu pai, faziam um género de "comissões" em África onde ganhavam mais algum dinheiro.

Durante muito tempo, sempre ouvi a minha mãe a dizer que o meu pai devia ir para a África, poderiam mobilar melhor a casa, ter outro nível de vida, e o meu pai que já na altura era um bocado diferente das outras pessoas, dizia “que não ia para a África explorar os pretos”. Sempre se recusou a ir.

Mas, eu sonhava que isso ia acontecer. Cheguei a dizer às professoras que ele ia para a África, e eu ia ficar interna. E a mentira veio a descobrir-se quando uma professora encontrou o meu pai e lhe disse:
   - Então, senhor engenheiro, vai para a África?

O meu pai ficou furioso! Quando lhe passou a fúria, contou-me a história de um colega de curso, Amílcar Cabral, e do trabalho que ele estava a começar a desenvolver na Guiné. Foi a minha primeira lição sobre o colonialismo.

É esquisito pensar que o que me lembro do colégio, é das coisas que não tem nada a ver com o ensino.

Lembro-me muito bem de andar na 1ª classe e ter acontecido uma tragédia. Uma das alunas crescidas, namoraria um rapaz da força aérea que resolveu fazer voos rasantes ao colégio. Tão próximo foi o voo, que bateu com a asa do avião no telhado, caindo do outro lado da linha do comboio. Morreu! 

Eu, com a pressa de me safar, fiquei sem a tampa de uma caneta de tinta permanente que era novinha em folha.

Lembro-me de uns treinos que havia, quando da preparação para a 1ª comunhão.
Treinávamos, para aprender a engolir as hóstias sem que elas tocassem nos dentes, mas a hóstia colava-se ao céu da boca, obrigando a um discreto movimento de dedos para a descolar.

Era assustador. O medo que sentia, de poder estar a fazer mal ao “Senhor”!

Deixemos as coisas da religião, mas como é uma “coisa com escrita”, aqui fica o santinho, mandado fazer para comemorar o evento.

                                                                                                                                        


Voltando às recordações das coisas que não tem nada a ver com o ensino, lembro-me do pavor que tive de não conseguir decorar a “Balada da Neve” do Augusto Gil para ser recitada na festa do fim de ano.

Para me ajudar a vencer esse bloqueio, o meu pai veio em meu auxilio:
 - Se te esqueceres esticas o braço e dizes bem alto:
 Nunca, nunca ninguém há-de saber o que eu vinha aqui dizer!

Depois fazes uma vénia a agradecer e vais-te embora.

(Ainda hoje sonho com voltar a repetir esta frase, cada vez que tenho de fazer alguma comunicação em público.)




2 comentários:

  1. Mais um comentário copiado do FB: Clarisse Rosa - Minha querida amiga, se fosse hoje não te livravas do rótulo de dislexia e défice de atenção. Trocavas o nh e o lh, o p e o b, o ar e o ra e por aí fora... Ainda por cima, na cópia, é o que se vê. Não tomas atenção e copias mal o que era suposto corrigires. Défice de atenção! Provavelmente associado a hiperatividade ! Pelo que contas dos lavores, a coisa não devia ser famosa. Do que tu te livraste!

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    1. Já me fizeste rir. Se fosse hoje não me livrava dos óculos e daquilo para os pés.

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