Saudades ou o Que é Isto da Relação Com o Meio

Cristina Roldão - Este texto é para ti, lembrei-me dele a propósito da reflexão que o grupo da Kutuca, fez em Portimão, em que se falou do antigo espaço da Associação, com poucas condições, e de alguma dificuldade na apropriação do novo espaço.

Foi escrito há muitos anos, já não me recordo quantos… Penso que para alguma Acção do Sindicato, ou da CML, por alturas de umas comemorações do 25 de Abril (20 anos? 25 anos?). Não está datado, mas acho que cabe aqui.


Saudades ou o Que é Isto da Relação Com o Meio


Vocês não conhecem a Irmã Piedade, nem com certeza a irão conhecer, mas hoje deu-me para pensar nela, e no seu contributo para a minha formação.
Quando fui trabalhar para a Outurela, o 25 de Abril ainda estava fresco, correspondendo a uma certa euforia geral, e ao despertar em mim de uma consciência politica, aliada a algum populismo.

Estando a trabalhar num Colégio Particular, fui desafiada para ir trabalhar no Centro Social e Paroquial Nossa Senhora da Conceição. Centro esse que servia a população de três bairros degradados: Outurela, Barronhos e Salregos.

Trabalhar com as crianças deste “Meio” aliciou-me. Nem medi os prós e os contras. E lá fui! De vinte e cinco horas semanais passei a trabalhar trinta e seis, a ganhar o mesmo, a pagar transportes, a ter menos férias… Mas ia contente! Aquilo correspondia a uma certa “missão” que eu na altura achava que tinha que cumprir.

Que desilusão! Não queriam mais uma educadora para melhorar o trabalho pedagógico, mas unicamente para corresponder a uma exigência da Segurança Social de ter sempre pessoal técnico a cobrir uma exorbitância de horário.

A São e a Angelita, Auxiliares de Educação, acolheram-me de braços abertos, apesar de o meu cargo ter o nome pomposo de “Educadora Coordenadora”, o que na prática se traduzia a dividirmos entre nós três, e por duas salas, sessenta crianças em pé de igualdade...

A completar a equipa, havia a cozinheira Esmeralda, a Irmã Glória, minhota balzaquiana, que satisfazia o ego distribuindo amostras de remédios, e dando injeções aos “pobrezinhos”.

A comandar este minúsculo exército lá estava a Irmã Piedade, que quer de Verão, quer de Inverno usava sandálias, e que em tudo o que fazia imprimia tal velocidade, que o lenço da farda dificilmente se segurava na cabeça.

Tal como eu, a Irmã Piedade estava imbuída de um “espírito de missão” (diferente do meu), que era transmitido por palavras de ordem constantes:

   - Tudo, tudo pelo bem das crianças!
   - O Centro está ao serviço do Povo!
  - Não deixes para amanhã o que podes fazer hoje! (que tinha como resultado, a maior parte das vezes acções imprensadas).

Parecia à partida que tudo ia correr mal. A população não tinha a consciência política que eu tinha imaginado. O Centro era terrivelmente feio, o horário não dava para fazer qualquer “trabalho” com as crianças e, entre mim e a Irmã Piedade, havia de facto uma grande diferença de perspectivas, embora em certa medida os objectivos fossem os mesmos.

Foi isso que nos uniu. Foram as más condições de trabalho que estimularam a nossa criatividade, foi a falta de pessoal que implicou uma mudança de estratégia pedagógica: Se as crianças não fossem envolvidas no trabalho, ninguém conseguia sobreviver.

Foi a sua obsessão em que o Centro estivesse ao serviço da população, que me levou a saber tirar partido das situações e a saber ser polivalente.

Naquele Centro tudo se desmanchava, empilhava, transformava.

De segunda a sexta-feira, uma grande sala de paredes enfeitadas por enormes pinturas feitas pelas crianças, era um refeitório, sala de ginástica, recreio coberto.

Mas ao sábado e domingo transformava-se na capela mais tradicional, com o seu altar (duas mesas sobrepostas). Essas mesas, os paramentos, sacrário, e tudo o que era necessário para a liturgia, estava empilhado (acho que é a palavra certa) por trás de um cortinado de serapilheira.

As mesas do refeitório, que eram daquelas de “pic-nic”, desmontavam-se e arrumavam-se, e as cadeiras, as mesmas das crianças, eram alinhadas para o culto.

As pinturas feitas pelas crianças em grandes papéis de cenário eram retiradas facilmente porque estavam coladas em canas e tinham um fio para pendurar à laia de poster. Estavam penduradas nos pregos que suportavam as cruzes da “Via Sacra”. Era só enrolar e retirar já enroladas…

Nas sextas-feiras as salas das crianças eram também totalmente modificadas, e o material guardado. Não ficava nada de fora, daquilo que as crianças utilizavam durante a semana. Isto por causa dos catequistas serem muito jovens e por vezes não controlarem o material. (Era outra das suas manias, o não estragar! Nada nos negava, mas não admitia estragos por desleixo) Quando vejo pincéis estragados dentro de frascos de tinta ou cola seca lembro-me dela e dos seus inventários.

Na segunda-feira havia o repor tudo nos seus lugares. E tudo isto era feito com a colaboração das crianças. E que bem, embora com a nossa ajuda, elas dominavam o espaço e os materiais.

Sem saber, a Irmã Piedade vivia em constante “Trabalho de Projecto”, dava-nos a conhecer o pouco dinheiro que havia, e nunca se dava por vencida quando ele faltava.
O que é que precisávamos para melhorar o nosso trabalho? Era preciso? Arranjava-se… Custasse o que custasse!

Quantos dias correndo atrás dela por essa Lisboa, batendo a todas as portas, justificando pedidos, não admitindo recusas nem sequer para ser recebida.
Quantos passeios dados em camionetas várias, da GNR, dos Bombeiros…Quantos teatros, cinemas nós vimos! Se era para o bem das crianças, vamos a isso (sem demoras).

E pelo bem das crianças, enfrentou as senhoras do Centro Regional, modificaram-se os nossos horários. Abriu-se mais uma sala em que o equipamento foi todo arranjado por nós, com placas de aparite, caixotes, cavaletes da construção civil, portas encontradas em demolições e muitas demãos de tinta a alindar, papel autocolante dando aqui e ali uma nota de cor…

E pelo bem das crianças o nosso horário foi modificado, encarregando-se ela de ficar com os chamados prolongamentos (das 17.30 – 18.30).

Os contactos com as famílias eram fomentados, a porta estava sempre aberta e eles, lá entravam… cartas para ler, impressos para preencher, dúvidas para tirar, angústias para desabafar e alegrias para partilhar.
A possibilidade de lavar a roupa na máquina do Centro, restos para os animais e melhoria das condições de saúde, passando as vacinas a serem lá dadas…

E eles vinham e sentiam-se lá bem!

Quantos dias passados à soleira da porta (reminiscências Alentejanas daquela população), ouvindo a Ausenda cantar, ou o senhor Zé Branco contar, quando o bairro pregou uma partida à G.N.R. que queria deitar uma casa abaixo, só porque era clandestina. E eles não deixaram, porque deitaram numa cama, uma senhora com um bebé de seis meses ao lado dizendo que era um recém-nascido.

E a graça que os miúdos achavam!

   - Conte outra Sr. Zé Branco… e lá vinha a da manifestação mais bonita de todas, quando todo o bairro, desceu a Baixa, bandeiras na mão, gritando:
   - “Casas sim, Barracas não” .

E ouvindo estas palavras, as crianças lá se organizavam recreio fora, punho erguido gritando:
   - “Casas sim, Barracas não”…

E toda a gente esperava que nessa altura a cabeça da Irmã Piedade surgisse ajeitando o lenço a gritar:
   - Comunismo aqui não! Se querem casas vão-se inscrever na Associação.

E quase todas as tardes, lá vinha a muda conversar connosco na sua linguagem gestual, e as crianças a imitá-la e ela a rir-se satisfeita, embora por vezes fingindo que estava zangada correndo atrás deles. Aí a festa era completa.

E a avó do Emanuel que ia buscar o neto já um pouco “tocada”, e nos dizia sempre:
   - No fim do ano o meu menino vai para Coimbra, vai para lá estudar para doutor como o professor Salazar.

E o que nós nos riamos, pequenos rituais, quase sem significado, mas que nos uniam mais.

E as reuniões de pais foram transformadas em festas, e vinham os pais, as mães, os irmãos, avós e tios. E as reuniões de pais quase deixaram de fazer sentido…

E os recados lá chegavam:
   - Amanhã vou tosquiar as ovelhas, venham ver.
   - Já nasceu o bezerro lá na vacaria.
   - As rãs já cantam lá no charco!

E o que aquelas crianças sabiam, e o que me ensinaram… coisas tão bonitas e simples como saber distinguir um gafanhoto fêmea de um gafanhoto macho (Não tenho a certeza que soubessem, mas eram muito convincentes).

E hoje que penso mais nas questões pedagógicas, que as elaboro mais, vejo que bom trabalho ali se fazia (sem disso ninguém ter consciência). Aquilo era de facto ligação ao “meio”.

Ligação ao meio que ali se fazia, na naturalidade com que a Irmã Piedade encarava o facto de que se dava, devia receber também.

   - A Esmeralda está doente? Vem a mãe da Rosa fazer o almoço.
   - As sanitas deitam água? O Zé Branco que está sempre cá,  arranja-as.
   - Não há batatas? Não faz mal. Mande aí três ou quatro dos mais velhos (do ATL) ir comprar.
   - Amanhã traga o carro (era comigo). Vamos à GEL-MAR comprar peixe em quantidade! Como sai muito mais barato, depois já lhes posso dar dinheiro para comprar papel.

   - É preciso dar praia a estas crianças! Não há pessoal? Não faz mal, aluga-se mais uma camioneta, e vão os do Bairro que quiserem, sai-lhes mais barato do que irem de transportes e sempre ajudam a tomar conta dos miúdos…

E as idas à praia eram grandes e divertidas festas, pretexto para galhofas e grandes almoçaradas, com enormes panelões de arroz de tomate e pastéis de bacalhau, acompanhados por vários garrafões de refresco Royal.

E nada de promiscuidades, cada pessoa com seu prato, com seu garfo, com seu copo, porque acima de tudo a Irmã Piedade queria o bem dos meninos, e mesmo na praia tinham de comer bem e com higiene.

E nunca ninguém se perdeu ou afogou (embora a Irmã Piedade não confiasse muito em nós, pois diariamente, vestindo uma bata branca de nylon, entrava mar dentro, água pela cintura tentando segurar os mais afoitos. Imaginem o gozo que isto era na praia de Carcavelos.

Estive lá três anos, muito mais havia para contar, mas como a história já vai longa, para terminar em jeito de resumo algumas das coisas que aprendi com a boa da Irmã Piedade:
   - O cuidado com o material;

   - O implicar as crianças no trabalho;

   - A fazê-los ter prazer no trabalho, porque valorizado;

   - A cooperação entre os adultos da mesma instituição;

   - Saber tirar partido das situações;

   - O saber tornar o espaço polivalente;

   - A encarar a relação com os pais e com o “meio” uma coisa natural.

   - A ser tolerante com as ideias dos outros. Como eu não era religiosa, deixou-se de rezar antes do almoço, para não baralhar as crianças, dizia…

Embora a boa da Irmã não perdesse a ideia de nos levar para o bom caminho. Não calculam as missas de Acção de Graças que ela mandava dizer por cada coisa boa que nos acontecia.

Enfim devo - lhe muito, mas nem tudo foram rosas durante os três anos em que lá trabalhei. O trabalho era muito duro, e no meio disto tudo, o que nos salvou foi um sentido de humor muito apurado que toda a gente tinha, menos a Irmã Piedade…



7 comentários:

  1. Ana,ler as tuas palavras é como se estivesse "a viver" tudo o que escreves. Consegues ser tão empolgante na tua escrita que me sinto "transportada" . Parabéns

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  2. achei muito interessante, a escrita muito fluída, muito viva, como eu gosto das escritas. Fiquei a pensar na irmã Piedade e em como não se pode ser preconceituoso em relação aos praticantes de qualquer religião. Entre crentes e ateus, há gente muito generosa e que põe o bem dos outros acima de tudo. Depois, aqueles eram tempos que puxavam por nós, tão estimulantes. Compreendo bem o título principal: SAUDADES

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  3. Mais um texto maravilhoso Aninha...

    Tão bom ver espelhado nas suas vivências e os princípios que defende!
    Também eu passei de um colégio particular para um centro social, e curioso também de Nossa Senhora da Conceição... engraçado não é?
    Cá estou há já 1 ano ... sinto muitas vezes que a minha missão é esta, de me envolver com o tal meio, que não deixa de ser a matéria prima, que alimenta toda a cultura da infância e que me abre espaço para trabalhar diariamente sobre andaimes, que muitas vezes abanam por causa do excesso de horas, problemas sociais ou mesmo da falta disto ou daquilo... Também eu não permito que as minhas crianças subam para ouvir a missa de sexta, mas também eu as incentivo a fazer o bem, a não desperdiçar, a conhecer as tarefas da vida quotidiana, a estimar os mais velhos e a apreciar o que a terra nos dá... às vezes, e como a Ana, também se me atravessam as ideias mais arrojadas para mobilizar a comunidade e as famílias... muitas vezes consigo, outras não, muitas vezes fico orgulhosa e cheia de mim... às vezes quando me esvazio ... leio, ouço e guardo em mim palavras e exemplos como o seu! Obrigada Aninha...

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  4. Numa palavra: lembraste-me uma data delas... E Ruy Belo esteve em ti presentíssimo:
    E tudo era possível”

    Na minha juventude antes de ter saído
    da casa de meus pais disposto a viajar
    eu conhecia já o rebentar do mar
    das páginas dos livros que já tinha lido

    Chegava o mês de maio era tudo florido
    o rolo das manhãs punha-se a circular
    e era só ouvir o sonhador falar
    da vida como se ela houvesse acontecido

    E tudo se passava numa outra vida
    e havia para as coisas sempre uma saída
    Quando foi isso? Eu próprio não o sei dizer

    Só sei que tinha o poder duma criança
    entre as coisas e mim havia vizinhança
    e tudo era possível era só querer

    Ruy Belo, Homem de Palavra[s]
    Lisboa, Editorial Presença, 1999 (5ª ed.)

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    1. Jorge, se Ruy Belo esteve em mim presente, é porque a época era outra, em que (...) "tudo se passava numa outra vida
      e havia para as coisas sempre uma saída..."

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  5. Ana, mais uma vez foi tão Bom ler a tua escrita, sempre bem viva e deixando passar aquele tipo de humor que te é peculiar. Um texto tão sério e que simultâneamente me fez rir, talvez por conhecer, ao vivo, o teu jeito de contar as coisas da vida...
    Lembro-me de, quando chegaste à Voz, falares com muito respeito de uma tal irmã, pelo dinamismo e entrega que punha em tudo o que fazia pelo bem-estar das crianças e gostar de ouvir o que contavas. Sempre acreditei e acredito que diferentes perspectivas se podem juntar e contribuir para o mesmo objectivo. Afinal o que importa é o espírito de missão, a competência, a tolerância e algum sentido de humor para ultrapassar as adversidades da vida. Talvez os nossos políticos aprendessem alguma coisa com este teu rico e expressivo relato. Gostei mesmo! Obrigada pela partilha!

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